Notícias

Por que o século XIX ainda resiste ao século XXI no MRE[1]?

Geral | 28 de junho de 2017

Autor: Sinditamaraty

Compartilhe esta notícia:


Por que o século XIX ainda resiste ao século XXI no MRE[1]?

Evaristo Nunes[2]

Este texto não é sobre o episódio pseudo-humorístico que ocorreu em 26/06/17[3], no qual um chefe de missão diplomática, esse é o termo técnico que está na Constituição Federal e na Convenção de Viena, chama todos os comandados de um determinado departamento como escravos, isso mesmo, sem aspas. Não vou dar palco para racistas e elitistas. Aliás, evitarei usar adjetivos e personagens identificáveis, porque o que está em jogo é o futuro de uma organização sequestrada pelo século XIX e por seus arquétipos sociais.

Mesmo que superficialmente, vamos falar de pensamento, de linguagem, de hierarquia, de temporalidade, de ethos corporativo, de ordem democrática, de autorreferenciamento, de descolamento da realidade, de poder, de gatekeeping e de poder de agência.

Uma certa feita, desenvolvi uma pesquisa com um professor sênior da FGV em gestão pública, que me perguntou onde eu trabalhava. Quando lhe disse, ele de súbito lembrou uma história caricata, mas verdadeira: em um posto na África, havia somente um terceiro secretário e um embaixador (nome ao qual nos acostumamos, tal qual o nome de uma rua que não se chama mais "rua das flores", mas se chama "rua da República"). Dado o isolamento geográfico e linguístico, os dois se tornaram parceiros no trabalho, no tênis, na balada, no vinho e no charuto. Determinado dia, cansado dos cuidados na fala para se dirigir ao chefe, o secretário dispara: "a gente já tá há tanto tempo junto que eu não sei se o chamo pelo nome ou por 'embaixador'". E rapidamente retrucou em tom jocoso: "Que é isso?! Não tenha dúvida. Chama-me por... 'embaixador'". Esse episódio, que tem tudo para ser verdadeiro, mostra como as palavras têm um papel fundamental na moldagem do pensamento dos indivíduos e na construção das relações de aceitação e auto imagem. Isso não fica no nível interpessoal somente, espraia-se até chegar nas relações de poder no MRE, para baixo e para cima, mesmo que isso signifique coisificar e desumanizar as individualidades e as subjetivações.

Como nos conta Vygotsky, o pensamento é constituído basicamente pela linguagem. Quando a linguagem é instrumento de um propósito utilitarista, como a hierarquia, e está condicionada em uma ordem socialmente estamental em pares antitéticos - ricos e pobres, senhores e escravos, chefes e subalternos, efetivos e terceirizados, do quadro e locais, diplomáticos e não diplomáticos, da carreira e não da carreira, concursados e comissionados - o pensamento elitista aflora nos gestos, nas palavras, no ritos e nos lugares da fala. Não são lapsos ou faux-pas, sic, são o que são, pensamentos constituídos que afloraram. Esses pares antagônicos reforçam pensamentos que se perpetuam no tempo, criando um ethos organizacional, que não se importa com a ordem democrática em vigor e toma o direito como um detalhe incômodo a circunvir. Nessa construção do ethos coletivo do MRE, pensamento e linguagem se auto referenciam e se retroalimentam, como que em um descolamento psíquico da realidade. Os instrumentos de poder, por sua vez, constituem seus meios de reforço nas remoções, missões e promoções, e, assim, é construída uma rede complexa de realidades narrativas de legitimidade e conformismo de percepções.

Contraditoriamente, como em toda a ordem humana, constrói-se uma ordem de dois níveis: a linguagem para fora é superior àquela para dentro, num efeito oposto ao descrito pelo sociólogo Roberto da Matta sobre a superioridade da ética da casa à ética da rua no Brasil. Ao se comunicar fora da organização, todos são doutrinados a não cometer gafes, a não fazer duplos sentidos, brincadeiras de mal gosto; ao se comunicar dentro, é selva. Vale chamar o outro de muitas coisas, do nível mais cínico, como "ei, mocinha" ao nível mais deplorável, como "escravo", desculpe, foi inevitável. Isso está estabelecido e naturalizado.

Nesse ethos ensimesmado, a ideia de que o MRE pertence e deve obediência irrestrita ao Estado democrático de direito é exótica à organização e não um imperativo ético-moral. Como lembra Carlos Britto, no Estado democrático de direito, os agentes do Estado aceitam voluntariamente cumprir as normas emanadas pelo próprio Estado. No MRE, essa é uma imagem impressionista e seletiva, não um constrangimento de partida, o que leva a judicialização cada vez maior de temas de obviedade legal juvenil.

Esse emaranhado de relações de poder é mediado por uma linguagem própria, que está longe de ser saudável no MRE. Como demonstrou a pesquisa sobre saúde ocupacional da UNB, há uma baixa qualidade das relações interpessoais tanto no sentido top-down, quando no sentido down-down. Novamente, de onde vem essa doença social? Primariamente da linguagem, porque é nela que são transmitidos conceitos e preconceitos, relações de poder, apartheids, antagonismos misóginos, incompreensões e indiferença acerca da dor do outro e se exercem padrões de adultismo e infantilização do outro.

Para ilustrar o que parece etéreo, permitam-me contar um diálogo que ilustra o debate do anacronismo. Uma vez um colega, chefe ou não chefe, mais um par na nossa vida, me disse: calma, as coisas estão mudando. Já foi pior. Eu o indaguei se era branco. Ele me olhou com olhar de quem perdeu o rumo por uma pergunta non-sense. Disse constrangido, sim. Eu respondi, eu também, mas, no século XIX, a elite branca do país dizia isso para os abolicionistas e para os negros acerca da escravidão. Já havia melhorado muito, diziam eles e se postergou o fim em nome do gradualismo reformista. Completei ao colega que naquela ordem de injustiças, pedir calma e aceitação ao gradualismo aos que estavam na condição de negro era uma galhofa e um ataque à dignidade daquelas pessoas. Completei, por fim, dizendo-lhe que éramos brancos no século XXI, mas nem por isso deixavam de nos tratar como "escravos" e que ainda mantinham e nos faziam aceitar o mesmo discurso de "tenha calma", "é uma questão de tempo", "já foi pior". Sinto como se Nabucco estivesse esfaqueando a aura de Alencar neste momento.

Mesmo que o conjunto probatório diga o oposto, há uma última saída para o anacronismo atávico: os guardiões da organização, os defensores dos portões, o sentimento de gatekeeping. Para esses, a "instituição", o que isso possa significar, está acima das leis, do país, dos indivíduos, dos mimimis, do tempo. Assim, nunca faltarão aqueles que, de maneira desassombrada, escrevem nas redes sociais que é preciso "achar uma maneira de punir" os que participam de reality show ou os que digam "imagina, foi uma linguagem coloquial chamar um colega de "escravo" ou nos bastidores deem uma ordem não escrita de que é preciso "controlar essa turma nova", que não deixa passar nada, ou que determinam aquela ordem auricular para que perca o prazo em um PAD sobre assédio moral para que ocorra a prescrição de punibilidade e transforme o processo em um cemitério de provas, ou que digam textualmente que servidores de uma carreira X "não tem educação consentânea". Esse sentimento cego de gatekeeping leva a organização a experimentar sucessivos vexames públicos e é um dos fatores centrais que impedem o enterro póstumo do século XIX.

Por fim, o que mudou nesse jogo foi a inversão do lugar da fala e, em última análise, o surgimento do poder de agência dos servidores de todas as categorias de reagir ao status quo anacrônico. Uma postura altiva, expressão que já foi usada para fora da organização, surgiu por dentro e se estruturou institucionalmente. Construiu-se uma capacidade de compreender o que significa saber-se vítima, mas não se sentir presa. Isso ainda não foi capaz de alterar completamente as estruturas mentais, porque a linguagem, os arquétipos, o ethos e os constructos do século XIX ainda têm muito poder no MRE. Entretanto, assim como a palavra tem poder de fato, tem também capacidade de mudar o poder.

[1] Porque Itamaraty é uma palavra do século XIX.

[2] Servidor Público Federal do Serviço Exterior Brasileiro da Carreira de Oficial de Chancelaria, pensador livre nas horas vagas e escravo de sua liberdade.

[3] Disponível em http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/me-indique-um-escravo-diz-embaixador-em-e-mail-colega-do-itamaraty/