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ARTIGO: Muito além da reforma administrativa

Artigo | 30 de julho de 2021

Autor: Artigo

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Há cerca de dez anos, o consagrado ator de Hollywood Matt Damon foi indagado por uma repórter acerca do tema da estabilidade dos professores de escolas públicas quando estava no evento público Save our Schools (salvem nossas escolas), ao lado de sua mãe, que é professora [1].

A repórter começa afirmando que para os atores não há estabilidade no emprego e que por isso haveria um incentivo para o profissional trabalhar duro e ser um ator melhor. Isso porque a pessoa deseja manter seu emprego, afinal de contas! Então a repórter arremata perguntando por que não seria da mesma maneira com os professores. Mas, antes de citar a resposta de Matt Damon, permito-me fazer umas breves considerações acerca das razões primordiais para a existência da estabilidade no serviço público e aprofundar um pouco mais esse raciocínio simplório que coincide com a lógica binária e maniqueísta hodierna tão criticada.

Pois bem. Começo este texto escrevendo sobre a ideia primordial do legislador constituinte ao criar o instituto da estabilidade preconizada no artigo 41 da Constituição Federal, que foi construída com base no pensamento de salvaguardar o servidor de pressões políticas e permitir a continuidade do serviço a cada troca de governo, mantendo firme a atuação funcional e institucional do servidor aprovado em concurso.

Assim, enquanto na esfera privada o foco é centrado no desempenho e no desenvolvimento da própria empresa e seus proprietários, o escopo do serviço público deve ser o cidadão e a qualidade dos serviços públicos, jamais a pessoa do gestor.

Frise-se que o primado da ordem jurídica é assegurado justamente quando a Constituição Federal e os direitos fundamentais são entendidos como a principal ferramenta de trabalho do corpo de servidores públicos.

Portanto, a estabilidade no cargo público constitui relevante estímulo que a ordem jurídica entrega aos servidores para permitir sua atuação dentro de parâmetros lícitos, permitindo ainda a formação de uma memória institucional que dá ensejo à segurança jurídica aos gestores e também aos administrados.

É importante realçar que aos servidores não cabe somente o dever de cumprir as normas jurídicas, mas também o de noticiar a prática de condutas manifestamente ilegais, irregulares ou corruptas no serviço público, sem risco de perda arbitrária do cargo.

E esse último ponto é talvez um dos mais relevantes, pois sem essa garantia o servidor ficaria com uma verdadeira espada de Dâmocles em seu pescoço, pois ao verificar uma irregularidade ele teria o dever de noticiar; mas, ao mesmo tempo, deve ponderar o fato de poder ser exonerado sumariamente. Então é justamente o caso de estar no lugar errado e na hora errada. Mas então o que fazer?

Ora, diante do exposto não fica muito difícil imaginar que o pensamento do legislador constituinte ao criar o instituto da estabilidade foi o de permitir, efetivamente, que o servidor não pensasse duas vezes e decidisse por proteger o seu povo, o seu Estado.

Mas na prática, infelizmente, não é isso que acontece!

Como uma forma de censurar esses comportamentos dos servidores públicos denunciantes, podem ocorrer perseguições por parte de superiores do governo nos seus locais de trabalho, assédio moral e, até mesmo, haver o ajuizamento de ações penais ou de improbidade administrativa.

Veja-se como exemplo esta última sessão histórica da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado para investigar fatos relacionados à Covid-19 por parte do governo federal realizada no último dia 26: assistimos ao caso concreto dos irmãos Miranda depondo sobre suspeita de irregularidades na aquisição da Covaxin. Ambos os irmãos já estavam sendo alvos da estratégia de destruição de reputações por parte do governo na véspera do seu depoimento, pois o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda havia sido acusado pelo chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni de apresentar documento falso, o que foi comprovado na CPI que não era verdade. Isso sem contar as reportagens difamatórias na imprensa.

Percebe-se que a estratégia dos denunciados é muito nítida, pois a destruição de toda credibilidade daquele que faz a comunicação da irregularidade parece suficiente para descredenciar todas as suspeitas que pairam sobre a notícia de fato e servem como verdadeira cortina de fumaça para que não seja devidamente apurada a denúncia feita. Nesse caso, porém, apesar de os servidores passarem grande parte do tempo tentando se esquivar dos ataques por parte dos parlamentares da base do governo, havia outros senadores na comissão com uma postura diversa, buscando apurar a verdade dos fatos, com destaque para a atuação magistral da senadora Simone Tebet ao mencionar que "(...) o irmão do deputado deveria ser condecorado pelo governo ao invés de ser processado administrativamente porque ele está impedindo o governo de cometer um crime, um pecado mortal".

Na Agência Nacional do Cinema (Ancine) ocorreu um episódio assustadoramente similar, mas os servidores não tiveram a mesma sorte, pois o trato com eles foi infinitamente pior.

Uma denúncia anônima que deu origem a um relatório de auditoria interna produzido dentro da Ancine, a pedido da ouvidoria, identificou problemas na captação de, ao menos, R$ 200 milhões em projetos e indicou evasão fiscal na ordem de R$ 157,7 milhões. Cita a referida matéria que "dos 64 projetos com irregularidade, em 47 os recursos foram aplicados antes que o esboço da obra fosse aprovado ou submetido à análise. Outros 17 tiveram recursos aplicados após o prazo legal de 270 dias" [2].

Pelo montante até então apurado já dá para perceber que o valor da suposta evasão fiscal é superior aos US$ 45 milhões que foram objeto da suspeita acerca da vacina Covaxin.

Mas permanece o questionamento acerca do tratamento injusto que tiveram esses servidores da Ancine que foram perseguidos e processados, sentindo o peso de toda a força do Estado indevidamente. Basta uma simples comparação para observar que em 2018 a Ancine trabalhou com servidores concursados ocupando as posições de liderança, mas hoje, após o contra-ataque, a Ancine encontra-se ocupada politicamente, aparelhada.

Ora, é evidente que há necessidade de o Estado se preservar e atentar para os casos de informações falsas ou com qualquer tipo de ardil, evitando a ocorrência de denuncismos vazios e a existência de interesses escusos ou secundários por detrás destas condutas. Contudo, o primeiro passo para se chegar a esta conclusão é apurar! Sem "pré-julgamentos" e "pré-conceitos". Primeiro se deve investigar os fatos!

Até porque, como se vê, a primeira reação de quem está sendo atacado é tentar desacreditar aquele que traz a mensagem. Porém, o foco jamais pode ser no mensageiro, mas, sim, na mensagem, pois a apuração precisa ser com base nas evidências, nos fatos.

O maior paradoxo disso tudo é que o bem jurídico que esses mesmos indivíduos respondem criminalmente e na ação de improbidade administrativa é justamente a própria Administração Pública que ele visa a proteger ou tutelar ao firmar uma denúncia ou até testemunhar fatos irregulares.

Ora, como alguém pode ser acusado de violar a moralidade e a probidade administrativa quando é exatamente isto o que se pretende tutelar ao denunciar uma suposta irregularidade? Isso não faz o menor sentido!

Então cria-se uma situação esdrúxula na qual o indivíduo que protege ou, ao menos, tenta proteger a coisa pública é processado por supostamente violar a coisa pública. Chega a ser kafkaniano!

Ressalte-se que a identidade dos casos não para por aí, uma vez que as irregularidades apontadas no relatório de auditoria da Ancine foram devidamente comunicadas ao presidente da República por intermédio da carta de exoneração do então diretor presidente da Ancine, Christian de Castro Oliveira [3].

A conclusão é simples: Se a coisa está assim sem a reforma administrativa, cujo objetivo primordial é minar a estabilidade do servidor, imagine se isso passar?

Diante do exposto e continuando a entrevista de Matt Damon que iniciou o presente artigo, segue sua resposta taxativa ao ser questionado sobre a estabilidade dos professores de escola pública:

"Você acha que é a instabilidade que me faz trabalhar duro? Eu só quero ser ator, isso não é incentivo nenhum. Esse é o problema com a política educacional aqui, há uma visão intrinsecamente paternalista dos problemas que são muito mais complexos que isso. É como dizer que os professores ficarão preguiçosos se tiverem estabilidade. Um professor quer ensinar! Por que mais alguém aceitaria um salário de baixo e tantas horas de trabalho e fazer seu trabalho se você realmente não amasse o que faz" [4].

Portanto, a partir disso nota-se que a discussão já ultrapassa a estabilidade e a reforma administrativa, haja vista que hoje em dia, mesmo gozando da estabilidade constitucionalmente assegurada, muitos servidores são processados, perseguidos e prejudicados. A pressão é forte pela censura e pela mordaça.

Portanto, muito além da estabilidade e da reforma administrativa, é preciso tratar com seriedade a questão que envolve casos de corrupção e irregularidades no seio da própria Administração Pública para não cultivarmos um corpo de servidores coniventes, reprimidos e amedrontados.

Deve se ter em mente que os governos são transitórios, mudam ao longo dos anos. A alternância de poder é uma das características essenciais das democracias modernas. Logo, o servidor público brasileiro de carreira, seja ele juiz de Direito ou técnico administrativo, trabalha para o povo brasileiro, não para os governos. Aliás, essa é a ratio da estabilidade ou vitaliciedade dos cargos públicos.

Dessa maneira, o servidor público tem a incumbência de reunir dados de inteligência para melhoria das atividades, permitindo, assim, que o órgão administrativo ou o Poder Judiciário possam identificar e apurar eventuais irregularidades em benefício da população. O servidor público jamais deve trabalhar para ocultar irregularidades. Portanto, ao servidor público deve ser assegurado o direito de poder trabalhar para o seu povo, pelo seu povo e por um país melhor, e cabe ao Estado lhe dar essa garantia.

 

*Artigo assinado por Magno de Aguiar Maranhão Junior e publicado no dia 30 de junho no site Conjur