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Artigo: (Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32

Reforma Administrativa | 21 de setembro de 2021

Autor: Artigo

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Reforma administrativa é coisa séria. Bem feita, gera aumento na qualidade dos serviços públicos, ajuda a fazer crescer a produtividade da economia e melhora a trajetória fiscal de curto, médio e longo prazos. Malfeita, nos condena à mediocridade e à pobreza ao consolidar a máquina pública como reforçadora de desigualdades sociais.

Um projeto complexo (e confuso) de emenda constitucional chegou ao Congresso Nacional ao final de 2019. Ficou ali dormente até que, recentemente, entrou no rol das reformas a serem entregues neste ano. Foi colocado na mesma esteira desastrosa da reforma do Imposto de Renda. Deu no que deu.

O relatório apresentado pelo deputado Arthur Maia à Comissão Especial da Reforma do Estado tem retrocessos – por si só, inaceitáveis – e inviabiliza avanços futuros. Ele nos dá os motivos para defender o fim da tramitação da PEC 32. Destaco aqui três deles: 

1) Cravar no texto constitucional uma definição do que sejam atribuições de carreiras típicas de Estado é atender a pleito antigo de carreiras públicas de elite que queriam garantir privilégios na Constituição. Sim, há atribuições típicas de Estado que precisam ser preservadas e protegidas pela estabilidade, embora não necessariamente na Constituição. Ainda mais com definições estanques, em que cabem quase todos os grupos. Afinal, imagine ter de reformar a Constituição por que essas tantas atribuições exclusivas se tornaram obsoletas ou fundíveis? Ao abrir um espaço em que centenas de carreiras aí se identificam, pegando carona em blindagens injustificadas, os atuais privilégios das castas do serviço público não só deixam de ser eliminados para os poucos que os detêm, mas passam a ser constitucionalizados para quem não deveria tê-los. Ampliam-se em número e força as reservas de mercado (ao proibir contratações temporárias para o rol amplo e subjetivo de atividades típicas de Estado); se dá tratamento diferenciado na avaliação de desempenho; e se inviabiliza a dispensa por baixo desempenho, ao se colocar os procedimentos administrativos na mão de servidores da mesma carreira que o eventual dispensado. Trata-se de ampliar o fosso entre o mundo real e o das elites do serviço público brasileiro.

2) Há modelos consagrados de avaliação de desempenho no setor público. Eles exigem padronização, implementação cuidadosa e calibração no tempo. Precisam ser dotados de flexibilidade, desde que mantidos os conceitos de impessoalidade, estes garantidos pela avaliação final colegiada, pela padronização dos procedimentos e pelo direito à ampla manifestação do avaliado. Mas seu detalhamento não deve estar na Constituição, muito menos com referências por demais vagas, como o dever de considerar as condições de trabalho do avaliado. Colocar esse tipo de norma muito aberta na Constituição tem o único efeito prático de garantir o espaço para a judicialização das avaliações. Também não faz sentido que a avaliação tenha critérios distintos ou garantias especiais para classes de servidores de elite. Além de errado, é injusto. Compromete-se, assim, a probabilidade de uma justa, correta e eficiente avaliação de desempenho no setor público brasileiro.

3) No meio dos retrocessos e blindagens contra futuros avanços, o relatório envereda em tema que nada tem a ver com uma reforma do RH do Estado, mas muito a ver com a criação de um Estado policial. Faz com que as forças de segurança (ampliadas com a inclusão de guardas municipais e, pior, agentes socioeducativos, cuja equiparação a policiais é um grande desvio) sejam contemplados com privilégios constitucionais absurdos, que sequer as demais carreiras típicas de Estado possuem. O relator cede ao momento que vivemos, em que fortes lobbies de policiais são respaldados por um governo que vê nas armas seu único lugar de fala. O foro privilegiado ao delegado-geral da PF e aos delegados das Polícias Civis vai na contramão do que precisamos. Ampliar o conceito de forças de segurança e conceder integralidade e paridade na aposentadoria equivalem a devolver avanços importantes da reforma da Previdência. 

Não é à toa que o barulho dos sindicatos de servidores públicos sumiu. As antes campeãs #PECdaRachadinha ou #ReformaAdministrativaNao deram lugar ao silêncio nas redes sociais. Sinal inequívoco de que os interesses corporativistas estão atendidos numa PEC que representa o fim da reforma administrativa e a condenação do Brasil à mediocridade. É aqui que estamos e aqui que ficaremos com essa equivocada contrarreforma. (Texto de minha autoria e erros e omissões de minha responsabilidade. Mas, neste tema, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld são valiosos e imprescindíveis companheiros de jornada. Agradeço aos dois pela parceria e pelos comentários).

 

Artigo assinado por Ana Carla Abrão, economista e sócia da consultoria Oliver Wyman, e publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, no dia 21 de setembro de 2021.