ARTIGO: A falácia dos privilégios salariais no serviço público
Artigo | 29 de março de 2021Autor: Artigo
O maior peso do ajuste fiscal da recém-aprovada PEC Emergencial recaiu sobre o funcionalismo. É fácil compreender o motivo: teima-se com a falsa premissa de que os funcionários públicos do país são privilegiados e preguiçosos.
Esse senso comum é regularmente inflamado pela demagogia política e encontra um respaldo descabido na pretensa objetividade de análises simplistas de dados.
O erro mais recorrente é estereotipar uma classe tão diversa diante de disparidades evidentes —como, por exemplo, o salário inicial de um juiz federal ser 35% maior que o vencimento em final de carreira de um professor universitário.
Estudos repercutidos nesta Folha refletem o problema.
Pesquisadores da FGV enxergaram nos dados da Receita Federal um indicativo de vantagem salarial de servidores públicos federais. Compararam o Distrito Federal com estados de maior complexidade geográfica e ignoraram que os ganhos reportados para Brasília são compatíveis com cidades semelhantes e bem superiores a outras com alta prevalência de servidores públicos.
Reportagens baseadas em dados do IBGE e do Banco Mundial indicam que, em média, os servidores públicos ganham 20% a mais que trabalhadores no setor privado. O valor está abaixo da média mundial e torna-se quase insignificante quando o Judiciário é retirado da análise. Juntam-se ainda, no mesmo bolo, todas as carreiras, incluindo aquelas não existentes no serviço público ou no setor privado. Além do mais, ignoram-se nuances, como a maior proporção de médicos no setor público, por exemplo.
Como consequência, há um desequilíbrio amostral que enviesa o resultado publicado.
É fácil encontrar exceções às conclusões desses estudos. Na era da ciência de dados, da transparência e da economia digital, não tem sentido ignorar os microdados. Há que se olhar de forma diferente o que é diferente.
Vejamos. Os salários iniciais em universidades privadas de elite, como FGV e Mackenzie, são entre 20% e 30% superiores aos pagos em cargo equivalente em uma instituição pública federal como UFRJ e UFMG, que, neste patamar de salário, sujeita o profissional a um regime de dedicação exclusiva.
O maior aumento médio no serviço público nos últimos anos contrasta com o fato de o salário inicial de um professor universitário ser, hoje, 23% mais baixo que na época do governo FHC. Servidores públicos não têm data-base, que permite correção salarial periódica na iniciativa privada, sendo necessária lei específica para majorar os seus vencimentos. Com o congelamento dos salários imposto pela PEC 186 por 15 anos, os vencimentos dos servidores serão corroídos à metade pela inflação. Para algumas carreiras, o tal “lobby do funcionalismo” não é tão efetivo.
Quanto às empresas estatais, as referências estratificadas e compiladas por firmas de recursos humanos revelam, por exemplo, que o salário de um advogado dos Correios está na média dos pagamentos realizados por grandes companhias —e que um analista financeiro do Banco do Brasil recebe menos que três quartos dos profissionais em instituições privadas semelhantes.
É mais difícil traçar paralelos para as carreiras sem equivalência com o mercado e, nesses casos, deve-se observar a prática internacional. Como exemplo, a imensa distância entre o salário de juízes e professores no Brasil, fato que não é observado em outros países.
Importante ressaltar que não faltam exemplos de bom desempenho do serviço público. As universidades públicas encabeçam as listas de prestígio em ensino e pesquisa na América Latina. A Embrapa busca tornar o país uma potência mundial na produção de trigo, repetindo o que foi feito com a soja. O SUS é o maior sistema de saúde do mundo e, ainda assim, presta o serviço a um custo de menos que a metade dos planos de saúde mais econômicos. E é graças às instituições públicas Fiocruz e Butantan que hoje temos vacinas contra a Covid-19 no Brasil.
Fica evidente que somente com uma discussão aprofundada —que não ignore a heterogeneidade do serviço público e seja cirúrgica no apontamento dos privilégios— será possível organizar uma reforma realmente justa, que garanta a solvência fiscal do Estado. Com um debate honesto, é possível avançar a reforma administrativa preservando a imagem do funcionalismo público.
Artigo assinado por César Rennó Costa, professor no Instituto Metrópole Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Publicado pela Folha de S. Paulo, em 16 de março de 2021
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