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Um ano sem Daniel Brasil

Geral | 11 de janeiro de 2018

Autor: Sinditamaraty

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Há um ano, perdemos um dos melhores e dos mais engajados oficiais de chancelaria que conheci, Daniel Brasil. Seu nome diz muito. Daniel, no hebraico, quer dizer “o Senhor é meu juiz” e o sobrenome Brasil remonta a uma tradição das famílias do Século XIX que refundaram sua etiologia a partir do lugar nacional. Daniel Brasil era daqueles colegas que “julgava” tudo em sua volta à luz de uma tradição humanista. Não deixava de ver, olhar e enxergar o que estava em jogo e buscava o que era melhor para o bem viver.

Não se escondia, tal qual um julgador que não escamoteia sua identidade. Não colocava suas percepções pessoais à frente dos objetivos éticos, porque lutava por um determinado tipo de Brasil. Pelejava, como se diz na terra dos seus pais, o Piauí, em nome de uma cruzada civilizatória por um Brasil sem assédio institucional, “by the book”, por um MRE dessacralizado e humano, sem maneirismos e “fuleragens”, expressão dele.

Daniel era um servidor que não apresentava suas credenciais acadêmicas como maneira de diminuir seu opositor. Tampouco caia em uma servidão voluntária, que pede desculpas por existir e agradece por aquilo que é simples dever da carreira. Esse guerreiro não se apequenava diante das constantes atitudes de patronagem (patronizing) dos círculos superiores nem se agigantava abobalhadamente, mesmo quando tinha munição para isso.

Daniel Brasil foi-se e nos deixou um vazio profundo. Uma orfandade em muitas dimensões espirituais e de luta. Felizmente, deixou alguns depoimentos gravados e textos sobre o MRE e sobre a nossa carreira. Esse, que o leitor terá acesso, é um dos últimos que ele escreveu. Todos verão a profundidade da verdade de Daniel nas palavras e na clarividência do seu julgamento e visão de Brasil embutidas.

O que muitos não percebem é que a nossa geração não foi fruto do desejo interno do MRE para fortalecer a profissionalização da carreira. Como lembra Daniel no texto, a razão da nossa chegada foi a substituição de contratações ilegais, ou seja, foi um constrangimento legal que nos fez chegar ao serviço exterior brasileiro. Somos filhos de uma imposição externa, de um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público. Quem chega nessas condições têm um compromisso moral com o país e suas leis. Como diria José Régio, “todos tiveram pai, todos tiveram mãe; mas eu, que nunca princípio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo”.

Daniel e todos nós dessa geração somos frutos do amor entre a ilegalidade e a capacidade de fazer valer o Estado Democrático de Direito. No final, esse guerreiro nos alerta que voltaram a ocorrer os mesmos motivos que nos trouxeram ao MRE. Em menos de uma geração desde a entrada de Daniel, a mesma malandragem jurídica retornou sob os auspícios ativos do comando da organização e da passividade leniente dos servidores e dos órgãos de controle. O nosso guerreiro soube estender toda essa informação generosamente, sem se esconder atrás de heterografias e sem medo das represálias. Isso é muito.

Por fim, em tempos de empreendedores de erros e medos, de intolerância e mediocridade, de covardia e colaboração com o que oprime, reverenciar meu irmão de guerra e paz é uma honra e uma obrigação. Asé, Daniel Brasil. Asé ô.

Evaristo Nunes

Relato Daniel Brasil:

“Sou Oficial de Chancelaria desde 2005. O concurso que fiz aprovou mais de uma centena de candidatos e muitos foram lotados na Agência Brasileira de Cooperação (ABC) para preencher o espaço deixado pelos contratados temporários do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que tiveram seus contratos encerrados após Acórdão do TCU. Depois de tomarmos posse, fizemos a inserção institucional mais rápida da história desse País. Lembro-me de tentar apertar a mão do colega contratado temporário do PNUD e de ele levantar e dizer: “pode sentar, ainda tá quentinha!” E com essas palavras edificantes, terminou o meu treinamento para gerenciar a cooperação bilateral com o Canadá, a Espanha, o Reino Unido e outros países da OCDE ! Afinal de contas, qualquer um poderia fazer aquele trabalho cartorial, me diria depois um Diplomata!

Não obstante, fiz parte da equipe que construiu, em conjunto com a então Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional (CIDA), a primeira experiência de edital público em cooperação internacional brasileira. É isso mesmo, as instituições brasileiras e canadenses apresentavam suas propostas de projeto e uma comissão formada pela CIDA e por representantes da ABC, todos Oficiais de Chancelaria, avaliavam uma carteira de projetos que chegou a cerca de 20 milhões de dólares. Desenhamos a primeira estratégia de gênero e raça da cooperação brasileira, transversal a todos os projetos da carteira, que incluíam agricultura, gestão pública, pesca, planejamento urbano, gestão de bacias hidrográficas e tantos outros. Parte do nosso trabalho era supervisionar desde os projetos in loco do semi-árido nordestino a zonas de guerrilha, como em Gonaives, no Haiti. Até hoje dizemos que o servidor que trabalhar na ABC tem que gostar de perrengue! Tem que se preparar para estar longe e incomunicável, se virar “nos trinta”, porque VOCÊ (e não espere ninguém além de VOCÊ) é a cooperação brasileira na análise dos projetos, nas missões, nas negociações, no acompanhamento e na gestão de conflitos entre parceiros.

Nós, Oficiais de Chancelaria da ABC, queríamos muito contribuir com a cooperação brasileira nascente com demais países em desenvolvimento, chamada de SUL-SUL. Estudamos os manuais de cooperação de outros países e construímos o primeiro manual de cooperação internacional da ABC, que serve, até o presente, como referência para instituições e organizações brasileiras e estrangeiras para a construção de projetos de cooperação internacional. Tive oportunidade de negociar com os parceiros do mundo dito desenvolvido recursos para o financiamento de nossa cooperação e, com isso, criamos os primeiros projetos de cooperação trilateral, assinados em Porto Príncipe, nas áreas de saúde (com Canadá) e reflorestamento (com a Espanha). Hoje a ABC tem uma coordenação inteira só para gerenciar esse tipo de triangulação. Era tão grande o nosso entusiasmo com aquilo que “qualquer um pode fazer”, que queríamos compatibilizar nossas carreiras com as necessidades da cooperação brasileira: só seríamos removidos para Postos no exterior que tivessem projetos de cooperação a serem gerenciados, com a criação dos núcleos de cooperação internacional nas representações do Brasil no exterior (mais tarde fui entender que criar esses núcleos ia muito mais além da vontade política: Ofchan , segundo a lógica do Itamaraty, nunca iria assumir a cooperação nos Postos).

Para o Itamaraty, o trabalho de Oficiais e Assistentes de Chancelaria era aquilo que “qualquer um pode fazer”, mas na Esplanada muitos consideravam que era uma expertise. Fui convidado, em 2007, para chefiar o setor de cooperação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). Neste trabalho, originamos os primeiros projetos de cooperação internacional na área, notadamente com os EUA, que chegou a figurar como o segundo mais importante tema da agenda bilateral, atrás dos biocombustíveis. Também nasceu, na SEPPIR, o primeiro projeto de cooperação internacional entre comunidades afrorrurais (quilombos) nas Américas, que redundou no pioneiro projeto de Resolução da OEA sobre os direitos das comunidades afrorrurais.

A experiência com os editais públicos, ainda uma novidade no Itamaraty, levou-me à construção de diversas inciativas pioneiras, em parceria com a ABC, como o Edital da cooperação descentralizada, quando compunha a equipe da Subchefia de Assuntos Federativos da Presidência da República, e o Conexão Brasil-África, quando era chefe da assessoria internacional da Fundação Palmares do Ministério da Cultura. No primeiro, pela primeira vez, houve um processo de seleção pública de projetos com a participação de entes federativos e, no último, criamos a cooperação técnico-cultural, promovendo o intercâmbio entre artesãos, documentaristas, engenheiros de som, arquivistas e demais profissionais ligados à arte e à cultura no mundo africano e da sua diáspora.

Fui removido para a Embaixada do Brasil em Havana em 2013 e o colega Ofchan Tiago Saboga me disse: “você vai cuidar da administração”. A despeito de nunca ter trabalhado com administração e das pululantes ideias para o setor de cooperação do Posto, reformamos a Embaixada, apoiamos a montagem logística da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), estabelecemos as rotinas administrativas e contábeis em cumprimento ao relatório da CISET , e atualizamos todo o patrimônio da Chancelaria. O meu telegrama de partida do Posto, de 1 de setembro do corrente ano, diz: partiu. Não que eu não ache ridícula a elegia diplomática costumeira, mas entendo que o trabalho que “qualquer um pode fazer” não merece nota.

Após a remoção para Brasília, voltei à ABC, como o bom filho a casa torna, depois de ter vivido experiência de ser vítima de assédio moral, de ter sentido o peso do descaso comigo e com minha família e o desprezo da chefia na Embaixada, mesmo diante da série de violações aos nossos direitos como agentes diplomáticos em Cuba, originadas a partir do acidente, que por muito pouco não mata minha esposa, ocasionado por prática ilegal da TransCimex, empresa estatal daquele país. Voltei também com um doutorado em antropologia pela UnB, pela University of British Columbia canadense e pelo Instituto Cubano de Investigación Cultural Juan Marinello. Retornei para a ABC para fazer a mesmíssima coisa que fazia há 11 anos. Voltei para constatar que Ofchans de 11, 15, 20 anos de ABC não ocupam cargos de direção e coordenação. Por que? Ora, porque não pode. Os contratados temporários do PNUD abundam na Agência (sim, aqueles mesmos impedidos de trabalhar na ABC após o Acórdão do TCU), o número de Ofchans é reduzido, pode-se contar nas mãos. Aliás, um colega de concurso compartilhou um dado aterrorizante para qualquer administrador público: 75% de nós, Oficiais de Chancelaria de 2005, já não trabalhamos no Itamaraty. Assédio institucional? Não, bobagem. Afinal, continuamos há 11, 15, 20 anos fazendo o mesmo daquilo que “qualquer um pode fazer”.

Daniel Brasil