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A atuação dos servidores do Itamaraty em meio a uma guerra sanitária

Geral | 11 de dezembro de 2020

Autor: Sinditamaraty

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No dia 9 de fevereiro deste ano, um grupo de 34 pessoas desembarcava na base aérea de Anápolis, Goiás. Todas vinham da região de Hubai, na China, epicentro da pandemia da covid-19. A declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a pandemia só viria no dia 11 de março. A China registrou o primeiro caso da nova doença em novembro de 2019, mas somente no dia 31 de dezembro decidiu comunicar ao mundo o que estava acontecendo. No dia 23 de janeiro, toda a região vivia um rigoroso lockdown e, naturalmente, a vontade desse grupo era voltar para casa. Estar em casa, perto da família, é o desejo da maioria quando algo não vai bem.

Naquele momento, esperava-se que fosse uma excepcionalidade e outras repatriações não seriam mais necessárias. A repatriação é uma situação extrema e significa que algo vai muito mal. Além disso, a repatriação não é um direito liquido, previsto em lei. E, talvez por isso, não haja recursos assegurados no Orçamento da União. O orçamento do Ministério das Relações Exteriores (MRE) é baixo, um dos menores de toda a Esplanada dos Ministérios. A maioria dos recursos são destinados à manutenção dos postos e de pessoal, sobrando pouco para este tipo de auxílio. “A verba vai ficando cada ano mais limitada e a primeira a ser cortada, à medida que o orçamento do MRE vai diminuindo”, conta o presidente do Sinditamaraty, João Marcelo Melo, que é oficial de chancelaria. Ele assegura: na pandemia de covid-19, este foi o principal percalço.

Normalmente, o processo de repatriação começa nos consulados brasileiros. O pedido de brasileiros que desejam voltar ao Brasil, mas que não têm condições no momento para tal, é recebido. O requerente é orientado a preencher um formulário e solicitar um atestado de hipossuficiência. Este procedimento é feito em parceria Advocacia Geral da União (AGU), que entrevista a família do brasileiro interessado em voltar ao Brasil e comprova se ele precisa mesmo da ajuda do governo. Com a confirmação da hipossuficiência pela AGU, cabe ao Itamaraty a decisão de usar seus recursos para ajudar na repatriação. “Em muitos postos mais próximos, os servidores tiram do bolso para que o brasileiro volte para Brasil. A gente faz vaquinha para ajudar os casos mais dramáticos” lembra João Marcelo Melo.

Repatriações durante a pandemia
Antes da pandemia causada pelo coronavírus, a média era de 100 repatriações por ano. A doença se espalhou pelo mundo com a velocidade da vida moderna e em pouco tempo uma força tarefa teve de ser montada para atender a demanda de solicitações, não só de brasileiros que não tinham meios para pagar pela viagem como aqueles que com passagens em mãos viam seus voos serem repetidamente cancelados. Os servidores do Itamaraty se viram em uma missão árdua, diferente de muitas outras já enfrentadas em tempos de paz. Enquanto muitos se isolavam em suas casas, seguindo as recomendações diversos governos e da OMS, assistentes de chancelaria, diplomatas, oficiais de chancelaria e servidores do PCC/PGPE, no Brasil e no exterior, trabalhavam para o maior número possível de brasileiros voltar ao País. Até o último levantamento feito pelo Ministério das Relações Exteriores em julho de 2020, eram cerca de 40 mil brasileiros, vindos de 107 países, para solo nacional.

A brasileira Noranei Miranda, que morava em Verona, na Itália, há 20 anos, compõe a lista de repatriados. Ela precisou de ajuda do Itamaraty depois de ter dois voos cancelados logo no início da pandemia e planos frustrados para passar o Natal com a família, em Brasília. “Consegui viajar somente dia 14 de maio, meses depois da programação. Depois dos voos cancelados, soube que eu poderia tentar um voo de repatriação. Então, entrei em contato com o consulado do Brasil em Milão, eles foram muito atenciosos, mas a informação que tive foi que a fila de espera era enorme. Para minha surpresa não demorou muito, recebi um e-mail dizendo que eu estava escalada”, conta a brasileira que embarcou de Roma.

Por conta da pandemia, a AGU declarou a hipossuficiência de todos os brasileiros afetados, em qualquer lugar do mundo, independentemente da situação de cada um. “Nunca se viu 100 pessoas chegando juntas ao posto pedindo repatriação, como foi no início da pandemia. Isso só acontece quando explode uma guerra no país. Do dia para a noite, a gente teve algo como 45, 50 mil e-mails para requisitar a repatriação. Era em média 1 mil contatos por dia. E teve gente que não usou o formulário, foi direto ao consulado”, lembra João Marcelo Melo.

“Chegamos a trabalhar 14 ou 16 horas por dia! A repatriação na Austrália foi um desafio bem grande, pois recebemos, entre março e julho, cerca de 3 mil consultas relacionadas à pandemia, dos quais cerca de 2 mil eram solicitações de repatriação. Quando o voo fretado foi aprovado, foi bastante corrido para selecionar os contemplados. A princípio parecia que o voo havia resolvido a demanda, mas logo havia mais de mil nomes na planilha novamente. A administração também teve que correr bastante com os procedimentos de licitação e contratação”, conta Juliana Ciccarini, oficial de chancelaria que atua em Sydney. Mais de 15 mil brasileiros têm residência na Austrália e cerca 50 mil brasileiros visitam o país todos os anos.

"Era necessário ter muita sobriedade, alteridade e calma para lidar com o desespero de familiares das pessoas que estavam sem poder voltar para o Brasil por conta de cancelamento de voos. Em muitas situações, brasileiros que estavam em cidades que não tinham uma representação brasileira, o desespero dessas pessoas aumentava, porque se encontravam impedidas de viajar, com voo cancelado, sozinhas e com poucos recursos ante a incerteza de quanto tempo ficaria nessa situação de isolamento. Havia certa frustração por parte de quem atendia quando se tornava inviável oferecer uma solução a curto prazo para situações mais complicadas que envolvia a saúde do brasileiro atendido", desabafa o vice-presidente do Sinditamaraty, Jansen Martins.

Destino turístico de mais de 800 mil brasileiros todos os anos e residência de outros cerca de 80 mil, Portugal foi um dos países mais críticos. Diariamente mais de 300 solicitações de auxilio eram feitas. Segundo relatos dos servidores, brasileiros chegavam a fazer filas desordenadas no aeroporto aguardando a possibilidade de embarcar para o Brasil. “Ao mesmo tempo em que estávamos nos adaptando às medidas e protocolos sanitários implementados no país, tínhamos que lidar com o desespero crescente dos turistas que não conseguiam embarcar em seus voos de volta. Muitos deles programaram-se para alguns dias de férias, com limite de dias de hospedagem, limitação de recursos financeiros e até mesmo medicação trazida para uma quantidade de tempo específica. A quantidade de e-mails e telefonemas recebidos pelo plantão foi gigantesca, demandando um esforço enorme e dedicação de todos os servidores e funcionários”, recorda Jivaneide Cordeiro, oficial de chancelaria do Consulado-Geral do Brasil em Lisboa. As repatriações de Portugal chegaram a 8 mil.

Eneida Meireles passou por dificuldades com o retorno do filho Leandro, que estava em Portugal desde agosto de 2019, com passagem de volta marcada 30 de maio de 2020, mas não conseguiu embarcar. “O voo foi cancelado e eles disseram que não havia como remarcar, porque não tinha mais voos agendados. Tivemos que comprar outra passagem de um voo novo autorizado em outra companhia. Ele conseguiu voltar quase um mês depois do programado”, desabafa a mãe.

Infectado pelo coronavírus em Nova York, Lee Andrew Fonseca tinha planos de voltar ao Brasil, em junho. “Tive que dirigir 24 horas até a Flórida para conseguir voltar. Tive um voo cancelado e iriam cancelar de novo se não tivesse chegado na Flórida dirigindo, porque não saia nem um avião de Nova York direto para o Brasil”, conta o brasileiro que mora em Cristalina, Goiás.

Tanto o filho de Eneida quanto Lee Andrew e sua família só conseguiram retornar ao Brasil por intermédio do trabalho consular.

Ações emergenciais
Mesmo com um grande volume de solicitações e com o amparo da AGU, os recursos não eram, nem são, suficientes para que todos fossem atendidos. “Vale observar que há muitos cidadãos brasileiros em situação irregular no exterior e com frágil situação financeira, o que sobrecarregou o setor de assistência consular dos postos, já que os pedidos de apoio para abrigo e alimentação se multiplicaram”, explica a oficial de chancelaria Flávia Marsiglia, que atua na sede do MRE, em Brasília. Por vezes era necessário analisar todo o contexto familiar para garantir a segurança das famílias.

Importante lembrar que a grande maioria dos servidores do MRE, no Brasil e no mundo, estavam trabalhando desde casa, sem acesso aos sistemas das embaixadas e demais postos, a telefones e com recursos próprios. “Na época foi uma loucura, um momento complicado para os servidores, porque não houve tempo para nos prepararmos”, lembra João Marcelo Melo. Além do trabalho remoto e, em um primeiro momento, sem a estrutura necessária, os servidores do MRE também passaram por dificuldades por conta do número reduzido de pessoas. O número de servidores no Itamaraty vem diminuído ano após ano. Com a ausência de concursos públicos, as vagas abertas com a aposentadoria de servidores não vão sendo preenchidas, isso é ainda mais notório nas carreiras de Assistente e Oficial de Chancelaria. Nos últimos 10 anos mais de 600 vagas ficaram em aberto. A isso se deve somar os servidores pertencentes aos diferentes grupos de risco para a Covid-19.

Para atender a demanda o MRE acionou a Força Aérea Brasileira (FAB) e também comprou passagens nos voos comerciais que ainda operavam, além de fretar aviões comerciais a preços exorbitantes e até ônibus no caso dos pedidos vindos da América do Sul. O custo operacional chegou aos 50 milhões de reais, oriundos de uma verba emergencial do Governo Federal para operacionalizar a repatriação do maior número possível de brasileiros. A desvalorização do real frente ao dólar colaborou para que os recursos se esgotassem ainda mais rápido. O MRE também precisou viabilizar junto a diferentes países a liberação de voos comercias impedidos de acontecer. Até mesmo a hospedagem para quem não tinha onde ficar foram feitas com a ajuda do pessoal do Itamaraty, que mobilizou igrejas e albergues.

Com o resultado positivo das medidas tomadas em diversos países muitos brasileiros que haviam sido repatriados retornaram ao exterior, mas a chegada da segunda onda fez com que os primeiros casos de reincidência fossem notados, o que traz um problema jurídico, alerta o Sinditamaraty. É que o brasileiro só pode ser repatriado uma vez na vida e o MRE enfrentara problemas legais se for necessário voltar a repatriar brasileiros.

À frente da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB), a embaixadora Maria Celina Rodrigues, enalteceu o trabalho dos servidores do MRE. “Ao longo deste ano, servidores em Brasília e nas representações diplomáticas e consulares mundo a fora prontamente se mobilizaram quando a OMS reconheceu a pandemia. Era urgente ajudar brasileiros que estavam de passagem ou viviam naqueles países e se viram sem dinheiro ou sem emprego do dia para a noite. Esta crise não acabou e continuamos a postos para ajudar”.

Fernando Cabral, presidente da Associação dos Familiares dos Servidores do Itamaraty, destacou: "a identificação com as pessoas em situação de risco, o conhecimento básico da legislação brasileira e habilidades profissionais relevantes para a organização das tarefas, ou o trato com o público em geral, fizeram a diferença. O desafio da repatriação representou, para muitos de nós, um grande esforço, mas, também, uma grande satisfação, por sermos chamados para aquilo que pleiteamos desde sempre junto à Administração: estar lado a lado com nossos cônjuges, somando esforços com os servidores do MRE e tendo nossa capacidade de trabalho reconhecida e apreciada. Ainda que em caráter excepcional, “remunerada” exclusivamente com a sensação do dever cumprido, essa experiência, segundo os depoimentos de alguns associados da AFSI, que contribuíram efetivamente para o êxito da relevante missão confiada ao Itamaraty no exterior foi, para nós, um alento. Algo que nos permite sonhar com o dia em que essa seja uma realidade bem mais corriqueira nos postos onde nossos cônjuges são chamados a servir’”.

“Por um lado, me sinto feliz de ter participado de uma ação que auxiliou tantos brasileiros e permitiu o retorno ao país num momento tão difícil. Por outro lado, acredito que esse retorno não deveria ter representado tanto gasto público. Por isso, devemos nos preparar para futuras ocorrências semelhantes, criando procedimentos mais transparentes, econômicos e justos para todos”, analisa Juliana Ciccarini.

Dificuldades à parte, o sentimento é de dever cumprido por parte dos servidores do Itamaraty. “Tenho certeza que todos, especialmente em postos com grandes comunidades brasileiras, sentem alívio por ter conseguido ajudar as pessoas. Foram postados muitos vídeos do público agradecendo e aquilo dava uma sensação muito boa. É a parte mais gratificante de trabalhar no setor consular: saber que você fez diferença e ajudou alguém, mesmo passando por situações frustrantes. Muitos servidores estavam de férias no Brasil quando tudo isso começou e não puderam voltar aos seus postos de trabalho, por conta do fechamento das fronteiras. Então, passaram a fazer parte da força-tarefa aqui do Brasil mesmo”, retrata João Marcelo Melo.

De Portugal, Jivaneide Cordeiro avalia a missão como vitoriosa. “Todos os servidores do quadro do Consulado envolveram-se na operação, trabalhando dia e noite na preparação dos sete voos fretados pelo governo brasileiro para repatriação de nacionais retidos em Portugal. Compreendo que, embora tenha sido um período de trabalho que levou a todos ao cansaço extenuante, o resultado final foi extremamente positivo, tendo em vista que muitos dos repatriados não teriam outra alternativa de volta que não a providenciada por meio da repatriação.”

O Sinditamaraty destaca também o trabalho daqueles que não são servidores públicos: os funcionários brasileiros dos postos no exterior. Especialmente em lugares onde a equipe já é reduzida, como na África e na Ásia. Estes brasileiros trabalharam lado a lado com os servidores em meio a tempestade. “Eles ficaram vivendo a realidade no dia-a-dia e sem saber quando isso iria melhorar, quando poderiam ver a família e amigos no Brasil de novo”, elogia o presidente do Sindicato.

Trabalho cujo objetivo é o bem-estar e a segurança dos brasileiros, como a da Noranei Miranda. “Felizmente tudo acabou bem, a emoção invadiu todos os tripulantes, muitos choraram quando pousamos em Recife, em solo brasileiro”, lembra a repatriada.